Por volta dos idos de 1940, havia apenas dois carros
(Jeeps) em Quixeramobim: um do Padre Jaime Felício, vigário, e o outro do
Doutor Álvaro Otacílio Nogueira Fernandes, então o único médico da cidade (e de
grande região do Estado).
Pois bem. Por incrível que pareça, esses dois carros
vieram a colidir, gerando um problema pessoal e até político (como se vê,
encrencas por conta de batidas de veículo vêm de longe, tão antigas quanto os próprios
carros).
O evento me foi narrado por meu irmão, Geraldo Pimentel
Fernandes, que naquela ocasião dirigia o carro do Doutor Álvaro (sem a presença
deste), nosso parente. O motivo foi um "pega" entre os dois
motoristas (coisa não revelada na época).
Padre Jaime era adversário político do Doutor Álvaro,
além de extremamente estressado, verdadeiro neurótico (foi meu professor, em
Fortaleza, anos depois, mas já então bem mais calmo, nem parecia o mesmo, pelo
que sei). Para se ter uma ideia, costumava despejar bacias d'água sobre os
casais que namoravam na calçada da igreja (estavam a praticar o que ele
gostaria de fazer, e não podia). Expulsava das funções religiosas as mulheres
que usassem roupas decotadas. Um verdadeiro misógino (quem tem aversão às mulheres).
O celibato muitas vezes provoca dessas coisas, o que mostra não ser nem um
pouco condizente com a natureza humana. Cultivou inúmeras inimizades em
Quixeramobim, inclusive com o Pedro Coutinho, figura importante na época, que
foi até prefeito (ou intendente) da cidade (tenho um depoimento sobre ele, mas
fica para outra ocasião).
Compreensível então que agisse como agiu, na colisão dos
veículos: requisitou a vinda de uma equipe de autoridades de Fortaleza, para
dirimir a pendenga.
Meu irmão assistiu o encontro do Doutor Álvaro com o
Inspetor, na calçada do seu sobradão, ali onde hoje funciona a sede da
Prefeitura de Quixeramobim. Devo lembrar que o doutor foi deputado federal em
dois mandatos, tinha grande prestígio não só em Quixeramobim, mas em todo o
Estado. Daí a sua atitude, arrogante talvez, para a cultura de nossos dias.
Ao ser questionado pelo Inspetor:
- Mas Doutor, o senhor entregar o carro para um rapaz
menor de idade (o meu irmão)?... Respondeu aos gritos, abanando a cara da
autoridade:
- O carro é meu, eu entrego a quem quiser... Você tem
nada com isso?... Você tem nada com isso?...
No desenrolar do processo, Geraldo foi tirar novo
registro civil, em Senador Pompeu, aumentando a idade...
Doutor Álvaro estudara na Alemanha, daí por que detinha
excelentes conhecimentos médicos para a sua época. Colou grau em medicina no
Rio de Janeiro, com a tese 'Moral Insanity' (Insanidade Moral), em que estudou
a loucura sob o tríplice aspecto da psicologia positiva, diagnóstico clínico e
terapêutica jurídica. Publicou duas obras: 'Sobre o Mal Reinante' (1905) e 'Em
Defesa Própria' (1906) e foi um dos fundadores do Centro Médico Cearense, cuja
presidência assumiu em 1919. Foi membro do Instituto (Histórico, Geográfico e
Antropológico) do Ceará, do qual foi membro, e deixou alguns trabalhos
publicados na Revista daquela prestigiada instituição, que podem ser facilmente
localizados na sua edição digital (grande repositório da cultura cearense).
Minha casa, em Fortaleza, está encravada em terreno que
pertenceu à sua chácara, grande propriedade (para os padrões atuais), no Bairro
Damas, entre a Avenida João Pessoa e o Metrô (na época RVC - Rede de Viação
Cearense), abrangendo várias quadras. Lamento imensamente haverem demolido a
sua mansão ali - na esquina da Avenida João Pessoa com a rua que hoje tem seu
nome, lindo casarão, representativo da melhor arquitetura da capital cearense da
época, a poucos metros da minha residência atual. Obviamente, o proprietário
temia que o imóvel fosse tombado pelo governo, impedindo alterações e, menos
ainda, uma demolição. Grande perda para a nossa história, nossa cultura e nosso
patrimônio arquitetônico, tão comum em nosso meio. Sempre que passo ali, e
observo o enorme e belo portão de ferro, ainda existente (possivelmente
importado), sinto um desagradável sentimento de perda. Quixeramobim foi mais
feliz, preservando o casarão do Doutor Álvaro, adquirido pela Prefeitura na
administração do Osvaldo Martins, quando eu era chefe de Gabinete. Cheguei a
participar das negociações, e sugeri que o prédio se denominasse "Álvaro
Fernandes". Osvaldo aceitou a ideia, e chegou a propô-lo nas negociações,
mas aparentemente a filha do doutor - Ana Fernandes - não foi muito sensível à
homenagem, que não veio a concretizar-se. Muito embora os mais velhos ainda
denominem o prédio "Sobrado do Doutor Álvaro", o que naturalmente vai
desaparecer com o tempo, na memória do nosso povo. E até esquecer que ele
remonta ao século XIX, construído por José Jacinto de Souza Pimentel (que
também construiu o antigo prédio da Câmara).
Hoje,
com justa razão, Doutor Álvaro Fernandes é patrono da Cadeira número 13, da
Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes, da Acadêmica Ana Cláudia
da Silva Oliveira, historiadora (da qual aguardo estudos melhores e mais
detalhados sobre o Doutor Álvaro, inclusive entrevistas com seus familiares,
residentes em Fortaleza). Em quase todas as Assembleias da Academia
apresentamos a biografia de um patrono, além dos dados biográficos do próprio
Acadêmico, e em breve, possivelmente, teremos oportunidade de ouvir nossa amiga
Cláudia Oliveira sobre a vida dessa relevante figura da história de
Quixeramobim.
João
Bosco Fernandes Mendes
Presidente
da AQUIletras -
Academia Quixeramobiense
de Letras, Ciências e Artes
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