O que mais
me chamou atenção, de início, foi a rapidez com que decidia as coisas, o que
admiro num administrador. Parecia que já tinha as informações para os problemas
que lhe levava (eu e qualquer outro).
O Gabinete
vivia cheio, de gente de todos os níveis, um desfilar interminável. Problemas
de todos os tipos, dos mais triviais aos mais sérios. Um conflito de terras
(que muitas vezes não ia para justiça, ele resolvia ali mesmo), uma cerca
fechando um caminho, brigas de vizinhos, tirar um filho ou um marido da cadeia,
e vai por aí afora.
Intercedeu
por muita gente presa pela repressão militar (geralmente através do
Governador). Um deles foi meu tio Joaquim Fernandes, um grande homem, de
saudosa memória, então líder sindical, função muito visada pelos órgãos da
Ditadura. Eu redigia as "defesas", sob as orientações dele, é claro.
Quando
viajávamos pelo interior do município, o carro parava mais do que jumento de verdureiro:
conhecia todo mundo, de uma ponta à outra do município, se duvidar, até o nome
do cachorro. Viagens muitas vezes desconfortáveis, estradas com frequência
ruins. Às vezes a fome batia, e ele 'entupia' de casa adentro, até a cozinha,
pegava uma colher e metia nas panelas. Naturalmente, a dona da casa ficava mais
alvoroçada do que galinha que cria pato na beira d'água. Ver Sua Excelência, o
senhor Prefeito, na sua pobre cozinha, mexendo nas panelas, era demais. Vi
alguns criticarem esse modo de ser. Mas aquilo gerava uma intimidade, amizade,
que geralmente ficava para o resto da vida. Por isso era imbatível,
politicamente, pelo menos naqueles tempos. Tanto, que depois foi deputado, uma
façanha, para um município tão pequeno (na época).
Uma vez eu
quase atropelava um dos filhos deles (não lembro mais qual dos três), de
maneira braba. Estávamos trabalhando (não sei se no Transvaal), e eu tinha ido pegar
um documento, às pressas. Vinha rápido, e quando ia chegando à casa, o menino
atravessou-se na frente do meu carro. Freei nas últimas. Alfredo e Teresa
estavam ali, vendo tudo. Ela correu aos gritos, e ele foi pegar o menino. Mas,
apesar das emoções em pandarecos (comigo então, nem se fala), nenhuma acusação
sobre mim, nenhuma reclamação. Aquilo me sensibilizou.
Quando levei
a ideia para fundarmos a biblioteca pública, ele bateu o martelo de
bate-pronto: vamos fazer, e ela vai se chamar Ismael Pordeus. Parecia que já
tinha as informações na cabeça, para tomar a decisão com tanta rapidez. Com
poucos dias eu fui a Fortaleza comprar o primeiro acervo de livros, e voltei
com o carro abarrotado. A primeira diretora foi a Ana Costa Martins, a quem
andei ajudando. Começou a funcionar com empréstimos, uma coisa difícil. Algum
tempo depois faríamos uma gincana cultural, com os estudantes, em que
conseguimos mais de 4.000 livros para a biblioteca.
Foi curto o
período em que trabalhamos juntos, devido à candidatura dele para deputado. Até
me convidou para trabalhar na campanha, mas eu preferi continuar no Gabinete,
com o Osvaldo. Mas nunca esqueci muitos detalhes vivenciados com ele, trago
muita coisa na memória, com saudade (aliás, de todo o Quixeramobim daqueles
bons tempos[2]).
Poucos anos
depois, eu entrava no Banco do Nordeste, me casei e fui morar numa casinha
humilde, pros lados do Antônio Bezerra (até que podia morar melhor, mas queria
economizar, para construir a casa onde ainda hoje moramos).
Lá um dia
ele bateu lá, com a Tereza. Não sei se então era deputado ou Secretário de
Estado. Mas o certo é que ficamos tão encabulados, em recebê-los numa casinha
quase miserável, tal qual aquelas senhoras que o viam mexer nas panelas.
Certa vez,
fui aprovado num concurso público federal (prefiro não descer a detalhes), e os
órgãos de repressão não me deixaram assumir. Ele soube e veio me perguntar se
havia algum 'engancho' político. Eu menti: disse que não, que não fora
selecionado em alguma coisa. Na verdade eu tinha vergonha (ou medo, sei lá) de
revelar que fora envolvido com as esquerdas, um 'subversivo', como diziam.
Mas hoje fico
feliz de nunca haver pedido qualquer favor, unzinho sequer. Sempre procurei conquistar
as coisas por merecimento.
Assim como a
amizade dele: puro merecimento. Hoje
ficou o orgulho daquele que eu fui (talvez melhor do que sou hoje).
E
saudades.
ESQUECI DE ASSINAR A CRÔNICA:
ResponderExcluirJOÃO BOSCO FERNANDES MENDES
PRESIDENTE DA AQUILETRAS - ACADEMIA QUIXERAMOBIENSE DE LETRAS, CIÊNCIAS E ARTES