segunda-feira, 16 de novembro de 2015

RECORDAÇÕES DO ALFREDO MACHADO

           Conheci o Alfredo quando fui lecionar em Quixeramobim, nos idos de setenta. Eu vinha do seminário (salesiano) e trazia uma boa bagagem cultural, o que fazia de mim uma peça razoavelmente necessária a muitas coisas, pois naqueles recuados tempos isso não era comum no interior. Quem podia buscava a capital[1]. E por isso (e algum conceito já adquirido no Colégio Andrade Furtado, onde lecionava português e inglês) ele me convidou para Chefe de Gabinete, o que eu aceitei de pronto.

            O que mais me chamou atenção, de início, foi a rapidez com que decidia as coisas, o que admiro num administrador. Parecia que já tinha as informações para os problemas que lhe levava (eu e qualquer outro).

            O Gabinete vivia cheio, de gente de todos os níveis, um desfilar interminável. Problemas de todos os tipos, dos mais triviais aos mais sérios. Um conflito de terras (que muitas vezes não ia para justiça, ele resolvia ali mesmo), uma cerca fechando um caminho, brigas de vizinhos, tirar um filho ou um marido da cadeia, e vai por aí afora.

            Intercedeu por muita gente presa pela repressão militar (geralmente através do Governador). Um deles foi meu tio Joaquim Fernandes, um grande homem, de saudosa memória, então líder sindical, função muito visada pelos órgãos da Ditadura. Eu redigia as "defesas", sob as orientações dele, é claro.

            Quando viajávamos pelo interior do município, o carro parava mais do que jumento de verdureiro: conhecia todo mundo, de uma ponta à outra do município, se duvidar, até o nome do cachorro. Viagens muitas vezes desconfortáveis, estradas com frequência ruins. Às vezes a fome batia, e ele 'entupia' de casa adentro, até a cozinha, pegava uma colher e metia nas panelas. Naturalmente, a dona da casa ficava mais alvoroçada do que galinha que cria pato na beira d'água. Ver Sua Excelência, o senhor Prefeito, na sua pobre cozinha, mexendo nas panelas, era demais. Vi alguns criticarem esse modo de ser. Mas aquilo gerava uma intimidade, amizade, que geralmente ficava para o resto da vida. Por isso era imbatível, politicamente, pelo menos naqueles tempos. Tanto, que depois foi deputado, uma façanha, para um município tão pequeno (na época).

            Uma vez eu quase atropelava um dos filhos deles (não lembro mais qual dos três), de maneira braba. Estávamos trabalhando (não sei se no Transvaal), e eu tinha ido pegar um documento, às pressas. Vinha rápido, e quando ia chegando à casa, o menino atravessou-se na frente do meu carro. Freei nas últimas. Alfredo e Teresa estavam ali, vendo tudo. Ela correu aos gritos, e ele foi pegar o menino. Mas, apesar das emoções em pandarecos (comigo então, nem se fala), nenhuma acusação sobre mim, nenhuma reclamação. Aquilo me sensibilizou.

            Quando levei a ideia para fundarmos a biblioteca pública, ele bateu o martelo de bate-pronto: vamos fazer, e ela vai se chamar Ismael Pordeus. Parecia que já tinha as informações na cabeça, para tomar a decisão com tanta rapidez. Com poucos dias eu fui a Fortaleza comprar o primeiro acervo de livros, e voltei com o carro abarrotado. A primeira diretora foi a Ana Costa Martins, a quem andei ajudando. Começou a funcionar com empréstimos, uma coisa difícil. Algum tempo depois faríamos uma gincana cultural, com os estudantes, em que conseguimos mais de 4.000 livros para a biblioteca.

            Foi curto o período em que trabalhamos juntos, devido à candidatura dele para deputado. Até me convidou para trabalhar na campanha, mas eu preferi continuar no Gabinete, com o Osvaldo. Mas nunca esqueci muitos detalhes vivenciados com ele, trago muita coisa na memória, com saudade (aliás, de todo o Quixeramobim daqueles bons tempos[2]).

            Poucos anos depois, eu entrava no Banco do Nordeste, me casei e fui morar numa casinha humilde, pros lados do Antônio Bezerra (até que podia morar melhor, mas queria economizar, para construir a casa onde ainda hoje moramos).

            Lá um dia ele bateu lá, com a Tereza. Não sei se então era deputado ou Secretário de Estado. Mas o certo é que ficamos tão encabulados, em recebê-los numa casinha quase miserável, tal qual aquelas senhoras que o viam mexer nas panelas.

            Certa vez, fui aprovado num concurso público federal (prefiro não descer a detalhes), e os órgãos de repressão não me deixaram assumir. Ele soube e veio me perguntar se havia algum 'engancho' político. Eu menti: disse que não, que não fora selecionado em alguma coisa. Na verdade eu tinha vergonha (ou medo, sei lá) de revelar que fora envolvido com as esquerdas, um 'subversivo', como diziam.

            Mas hoje fico feliz de nunca haver pedido qualquer favor, unzinho sequer. Sempre procurei conquistar as coisas por merecimento.

            Assim como a amizade dele: puro merecimento. Hoje ficou o orgulho daquele que eu fui (talvez melhor do que sou hoje).
            E saudades.


[1] Abordei minhas razões para buscar Quixeramobim naquele tempo, na crônica "Crime e Castigo, o Grande Romance", publicada neste blog.
[2] Às vezes me pergunto se era tão bom porque eu era jovem, essa coisa maravilhosa, que a natureza nos toma sem pedir licença.

Um comentário:

  1. ESQUECI DE ASSINAR A CRÔNICA:
    JOÃO BOSCO FERNANDES MENDES
    PRESIDENTE DA AQUILETRAS - ACADEMIA QUIXERAMOBIENSE DE LETRAS, CIÊNCIAS E ARTES

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