quinta-feira, 12 de novembro de 2015

PADRE MORORÓ, FIGURA EXTRAORDINÁRIA DA HISTÓRIA DO CEARÁ, ESPECIALMENTE DE QUIXERAMOBIM

            Quantas pessoas são capazes de dar a vida (literalmente: papocar, bater a caçoleta), por suas ideias, seus projetos, seus ideais? Pouquíssimas (entre elas, Jesus Cristo). Eu, por exemplo, não sou capaz disso, nem pretendo ser (quero é viver muito). O padre Mororó foi uma dessas, e o fez com coragem e dignidade mais difíceis ainda de se encontrarem.

            Gonçalo Inácio de Loyola Albuquerque e Melo (1778 - 1825), segundo o Barão de Studart[1], nasceu em Riacho dos Guimarães, hoje Groaíras, no norte do Ceará[2], de Félix José de Souza e Oliveira, do Rio Grande do Norte, e Teodora Maria de Jesus Madeira, filha do português Manuel de Matos Madeira, "um alto titular da nobreza de Portugal, de nome diverso desse pelo qual se fazia tratar, e evadido da sua terra ante a mortal perseguição desenvolvida contra a sua família pelo Conde de Oeiras, poderosíssimo Ministro d'El-Rei Dom José."

            Mororó (sobrenome adotado por ele, um costume da época, significando 'madeira muito rígida') ordenou-se no seminário de Olinda (1802), onde também estudou ciências físicas e naturais. Era um tremendo intelectual, como informa Studart: "profundo latinista, bom pregador sacro, jurisconsulto, botânico, foi Mororó também o diretor do primeiro jornal publicado no Ceará, o Diário do Governo do Ceará, saído à luz a 1º de abril de 1824".

            Foi professor de latim da vila do Aracati, demitindo-se em dezembro de 1821, e transferindo-se para Campo Grande (hoje Guaraciaba do Norte). Daí passou para a Barra do Sitiá (Quixeramobim), depois para a fazenda Canafístula[3], e em seguida para a Vila de Quixeramobim (residindo na Praça do Cotovelo, hoje Praça Coronel João Paulino). Aí, liderou a realização da sessão da Câmara, de 9 de janeiro de 1824, em que foi proclamada a república (no Brasil), fato que levaria ao seu fuzilamento.[4] Diz Studart: "foi esse o início da revolta [Confederação do Equador], que tantas lágrimas e tanto sangue custou ao Ceará. Destroçados os republicanos em Santa Rosa, feita a contra-revolução do Crato, proclamada de novo a monarquia por José Félix, que ficara na presidência da Província, como substituto de Tristão Gonçalves, seguiu-se a perseguição dos principais chefes, a captura dos cabeças da república. O Padre Mororó, preso em Fortaleza, à Rua dos Mercadores, hoje [início do século XX] Sena Madureira, e condenado à pena última, como o foram também seus companheiros de ideias [Pessoa] Anta, [Azevedo] Bolão, [Feliciano José da Silva] Carapinima e Pereira Ibiapina[5], foi fuzilado na atual Praça dos Mártires[6], ângulo norte do Passeio Público, a 30 de abril de 1825."

            Diz João Brígido[7]:

"O padre Gonçalo era de talhe elegante, alto, faces rosadas, expressão graciosa e vivaz. Nenhuma fortuna possuía além dum escravo, seu amigo de infortúnio, a quem legou a liberdade. Generoso até a prodigalidade, não soube tirar partido de sua ilustração, nesses tempos, em que eram dum preço inestimável os trabalhos da inteligência [ou da escolaridade]." "Era de uma memória pasmosa. Lecionava o latim, sem abrir nenhum dos clássicos, notando todavia a menor omissão que cometessem os seus alunos. Fazia versos latinos de grande perfeição."

            Viriato Correia, na Revista do Instituto do Ceará de 1924, assim descreve a sua execução:

            "Fortaleza, sob aquele maravilhoso sol do norte, acordou como para uma festa. Era um espetáculo novo a que toda gente queria assistir.

            Às sete da manhã os dois condenados [Mororó e João de Andrade Pessoa Anta] são entregues aos padres para a confissão.

            Na praça do quartel [atual quartel da 10 Região Militar], apinhada de povo, os réus apareceram. Quase ninguém [re]conhece o padre Mororó, que está ao lado de Andrade Pessoa. Naqueles poucos meses de cadeia os seus cabelos pretos tinham ficado como uma pasta de algodão.

            A brigada, sob o comando do major Queiroz Carreira, forma um quadrado para despir Andrade Pessoa das honras militares. No meio do largo há um oratório onde se vai fazer a desautoração [privação do cargo ou dignidade, como medida punitiva] das ordens sacerdotais de Mororó. O padre recusa-se: troquem-lhe apenas a batina pelas roupas de réu.[8] Vestem-lhe então a alva dos condenados. A camisola não lhe vai além dos joelhos.

            Mororó olha demoradamente a vestimenta, ajeita-se dentro dela, puxa-a para baixo o mais possível para lhe cobrir os joelhos e, vendo a figura ridícula que fazia com uma alva tão curta, diz com um sorriso de ironia cortante:

            - Louvado seja Deus, que até a última camisa que me dão é curta.

            Rufam os tambores, soam as cornetas. Vai começar a marcha em rumo do local escolhido para a execução. O padre está de uma serenidade que a todos assombra. Ao seu lado Andrade Pessoa, vai dar os primeiros passos. Naquela hora horrível da sua vida, Mororó não se esquece de que é um homem educado - dá a direita a Andrade Pessoa. Ladeados pelos padres, os dois republicanos, no quadrado das tropas, seguem. As ruas cada vez mais se enchem. Nas janelas as famílias apinham-se. Há gente até trepada nas árvores e nos telhados. Mas toda aquela multidão está silenciosa e aterrada.

            O préstito caminha [pela Rua de Baixo, hoje Sena Madureira] para a capela do Rosário [então Igreja Matriz]. Os sinos de todas as igrejas tangem a finados, entristecendo o fulgor daquela esplendente manhã de sol.

            Ouve-se a missa que frei Luiz do Espírito Santo Ferreira celebra. Segue-se depois, lentamente, a caminho da praça do suplício [pela atual rua Guilherme Rocha, depois pela Rua da Palma, atual Major Facundo]. No meio do largo, há um grupo de homens e crianças trepados. A carga é tão grande que, no momento em que os condenados passam, o galho do cajueiro se parte e todo o grupo vem ao chão.

            O padre Mororó estaca por um instante. Embora marchando para a morte, é o primeiro a rir[9] do trambolho do pessoal do cajueiro.

            Na praça em que se vai dar a execução, a multidão é tanta que a custo as tropas conseguem abrir passagem.

            Mororó é colocado na coluna da morte.

            Um soldado lhe traz a venda para lhe pôr nos olhos.

            - Não, responde ele, eu quero ver como isso é.

            Vem outro soldado para colocar-lhe sobre o coração a pequena roda de papel vermelho que vai servir de alvo. Ele detém a mão do soldado:

            - Não é necessário. Eu farei o alvo.

            E cruzando as duas mãos sobre o peito, grita arrogantemente para os praças:

            - Camaradas, o alvo é este!

            E num tom de riso, como se aquilo fosse uma brincadeira:

            - E vejam lá! Tiro certeiro, que não me deixe sofrer muito!

            Houve na multidão um instante cruel de ansiedade. Tinha sido ordenada a pontaria. Todo o vago rumor do povo tinha cessado completamente.

            - Fogo!

            A descarga estrondou.

            O padre tombou sem vida. A seus pés tinham caído três dedos da mão que as balas deceparam."

            Como se vê, Padre Mororó liderou um dos momentos mais marcantes da história de Quixeramobim, hoje registrado nos anais da história do Brasil. E os autores sempre se referem de maneira muito elogiosa, aos participantes daquela sessão da Câmara quixeramobiense. Daí por que, a Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes - AQUILETRAS, inclui o destemido padre entre os seus patronos.

João Bosco Fernandes Mendes

Presidente da AQUILETRAS



[1] No seu (hoje raríssimo) Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense, publicado entre 1910 e 1915.
[2] Segundo o site 'Forquilha Ontem Hoje e Sempre', Mororó "Nasceu a 24 de julho de 1778, na fazenda Santa Bárbara, à margem do riacho Sabonete, região conhecida pelo nome de Arribita, termo da freguesia e do município de Sobral, atualmente território de Forquilha." A fonte de sua informação é o batistério de Mororó, publicado na obra 'Três Riachos, Uma Forquilha', de Joab Aragão e Jeta Loiola, de 2006, paginas 206 a 214.
[3] Canafístula Velha - ver minha crônica 'Canafístula Velha, Sítio Arqueológico da História de Quixeramobim", publicada no blog da AQUILETRAS (aquiletras.blogspot.com.br). O que faria ele por lá? Certamente convidado pelo Capitão-Mor José dos Santos Lessa, o homem mais poderoso de Quixeramobim, proprietário da fazenda Canafístula, sua residência, pai da Marica Lessa. A presença de Mororó por lá indica, talvez, que na fazenda se desenvolvia atividades intelectuais e sociais.
[4] Na Câmara de Quixeramobim existe um quadro com uma cópia dessa ata.
[5] Pai do Padre Ibiapina.
[6] Na época, Campo da Pólvora.
[7] Revista do Instituto do Ceará, 1889.
[8] Paulino Nogueira, em trabalho publicado em 1894 (na Revista do Instituto do Ceará), diz que, na verdade, as autoridades o dispensaram da humilhação, o que não ocorreu com Frei Caneca, em Pernambuco.
[9] Diz Paulino Nogueira: "esboçou um ar de riso", o que é mais realista.

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