Não foi por acaso
que situei o meu romance O Lua (ainda não lançado – estou tentando fazê-lo
através de uma grande editora, em âmbito nacional) no ano de 1958, tendo como
cenário principal a cidade de Quixeramobim.
Pela minha crônica
História das Secas no Ceará,
publicada há poucos dias, vê-se que foi o ano mais seco no período de 1951 a
2013, ou talvez em todo o século XX (não dispomos das precipitações anuais até
1950) com míseros 206,87 milímetros. Pelo critério da FUNCEME, classifica-se
como seco o ano com precipitação igual ou inferior a 493,2 milímetros.
Portanto, as chuvas daquele ano atingiram 41,9% do mínimo necessário para se
classificar o período como 'inverno'.
Como os sertanejos
não dispunham da assistência financeira hoje existente (aposentadorias para o
trabalhador rural e outros benefícios, como as diversas 'bolsas'), as secas
constituíam períodos de pavor, a fome rondando as populações, como epidemia de
peste.
Os camponeses
dirigiam-se à cidade, um saco no ombro, e iam-se aglomerando, mais e mais,
diante dos armazéns, mercados e lojas que negociavam gêneros alimentícios. Todo
o comércio cerrava as portas, tão logo percebiam aqueles ajuntamentos. Se o
prefeito não tomasse a iniciativa imediata de distribuir alimentos, logo vinha
o saque generalizado. Portas arrombadas e lojas esvaziadas pela massa famélica.
A solução eram as
'frentes de serviço', grandes construções para oferecer trabalho braçal. Em
1958 foram implantadas duas obras importantes: a barragem, que aí está, dois
quilômetros a montante da cidade, e trechos da Estrada do Algodão. Os canteiros
de obras, regurgitando como formigueiros, com milhares de homens seminus, empurrando
carrinhos de mão, tangendo animais, manuseando enxadas, pás e picaretas,
máquinas enormes roncando como animais pré-históricos, mais pareciam cenários
bíblicos, dos filmes de Cecil B. de Mille (v.g. Os Dez Mandamentos).
Para aumentar a
movimentação, o furdunço, a campanha política roncando no mundo.
Disputavam a
Prefeitura a Dona Aldamira Guedes Fernandes (esposa do Dr. Joaquim Fernandes),
pelo PSD, e o Sr. Álvaro Araújo Carneiro, pela UDN.
A 'mídia' da época
eram as irradiadoras (ou simplesmente 'radiadoras'), com seus amplificadores
montados nos postes, bradando o dia inteiro e entrando pela noite. Quem fosse
premiado com uma besta daquelas bufando em sua porta, tinha que rezar para se
adaptar àquela zoeira infernal, arranjar algodão para os ouvidos, ou...
mudar-se.
Pelo PSD, a Voz de
Cristal, que viria a transformar-se na Rádio de mesmo nome, que aí está. Pela
UDN, a Voz da Liberdade.
Ninguém era
neutro. Imperava a lei 'Quem não está comigo, é contra mim'. As diferenças
políticas, mais do que hoje, transformavam-se em inimizades profundas, eternas,
quando não, em arranca-rabos, batalhas campais. Quem não apreciava, ou não
tolerava, as intriguinhas, as rasteiras, as invencionices maldosas dos
cabos-eleitorais e dos desafetos, rezava para aquele inferno passar logo.
Uma ocorrência
violenta, de grande porte, iria marcar aquela campanha e ficar na memória da
população da época, e ainda hoje é narrada por muitos, com riqueza de detalhes
(e alguns enganos, como sempre ocorre na tradição oral).
Um dos principais
líderes da UDN (mas não candidato) era José de Matos Luna, fazendeiro
originário de outro município, e chegado a fazer justiça com as próprias mãos,
segundo se comentava.
Diz a tradição que
ele teria determinado à Voz de Cristal parar com a propaganda em favor do
partido contrário, isto é, da Dona Aldamira. O proprietário da Voz de Cristal,
Fenelon Augusto Câmara (pioneiro no serviço de radiodifusão em Quixeramobim, e
hoje um dos patronos da nossa Academia, a AQUILETRAS) pede ajuda aos
correligionários, que mandam quatro homens, então atuando na guarda do DNOCS,
criada por conta do serviço da barragem.
De acordo com o
processo existente, com quase mil páginas (do qual tenho cópia), no dia marcado
Luna dirige-se aos estúdios da Voz de Cristal, com visíveis intuitos
provocatórios (afinal, ali era reduto de seus adversários políticos).
Ocorre um
tiroteio, transmitido "ao vivo" pela amplificadora, no qual morre
Luna e outros saem feridos. Um verdadeiro dia de juízo para Quixeramobim.
Em torno desse
evento, construí um romance, contendo alguns fatos reais e outros fictícios, no
qual descrevo a cultura e a pequena Quixeramobim da época. Considero esse o
melhor trabalho que realizei, entre a dezena de livros que já escrevi. O
título: O Lua – Romance-Reportagem,
Ambientado em Quixeramobim e Fortaleza, de Meados do Século XX, Mesclando
Realidade e Ficção de Forma Envolvente, Fruto de Muita Pesquisa.
No momento esse
trabalho encontra-se sob análise em uma editora de São Paulo, e aguardo sua
resposta, quanto a uma possível publicação em âmbito nacional.
De 1958 para cá,
Quixeramobim mudou horrores. Qual uma criança que se transforma em adulto.
Algumas coisas para melhor, outras nem tanto, como sempre ocorre com o
crescimento econômico.
No momento
enfrentamos mais uma seca, de grandes proporções. Como se vê na crônica - História das Secas no Ceará, já
mencionada, quase a metade dos anos deste século foram secos, algo inédito e
que pode indicar uma deterioração das condições climáticas, geradoras de chuva.
Felizmente, não temos mais a massa de famintos,
sacos às costas, invadindo o comércio. Os benefícios dos governos aliviam suas fomes,
suas agruras.
Infelizmente (ou não), o sertão quase não é mais
uma fonte de sobrevivência, para a prática de culturas de subsistência. Ninguém
acredita mais na agricultura sertaneja, no que fazem muito bem. O que se
consegue em um ou dois anos de boas chuvas, é tragado implacavelmente por um só
ano de seca. O sertanejo transforma-se em citadino (habitante da cidade), o
interior vira em deserto, de homens e animais, como falei na minha crônica O Sertão, um Deserto, publicada há
poucos dias.
Quer mais detalhes daquele ano fatídico, 1958, leia
o meu livro 'O Lua', que, de um modo ou de outro, chegará à população em breve.
Espero não haver ferido suscetibilidades, ou mal entendidos, algo tão comum e
tão frequente, quando se usa a linguagem escrita.
Em 1958 não havia as redes sociais, celular, Facebook,
televisão, nem mesmo as rádios. As maledicências, os fuxicos, os boatos
maldosos, eram transmitidos boca a boca, ou quando muito, por uma carta-anônima
(felizmente, o Facebook não admite o anonimato, o que permite identificar
exatamente a fonte do comentário pernicioso).
1958 tinha essa vantagem, a impossibilidade de
denegrir os outros através das redes sociais, mas, em compensação, uma
infinidade de agruras para as vítimas da seca.
A campanha política, tão agitada, violenta e até
perigosa, foi vencida por Dona Aldamira (ainda hoje na memória de inúmeros
quixeramobienses), que iria fazer uma boa administração, humana e de muito
socorro aos humildes e necessitados, com aquela sensibilidade que tanto
caracteriza a personalidade feminina (nem sempre, mas bem mais do que nos
homens).
No meu livro, já mencionado (O Lua), abordo a
cultura da campanha política, usando a ficção literária. É bom frisar que o
romancista goza de liberdades para criar, poetizar, fantasiar. Muitas pessoas,
menos esclarecidas, são levadas a pensar que tudo existente em um romance é
real, aconteceu efetivamente, o que não é verdade. O romancista pode criar o
que bem entender, usando sua imaginação, um dos maiores dons da mente humana,
origem de toda a arte – tanto literária, como musical, teatral, plástica e tudo
o mais.
Repisando o assunto, aquele livro – ainda não
lançado, como já disse, classificado como 'romance-reportagem', contém alguns
fatos históricos, mas nem tudo ali é história. Caso contrário, não seria
'romance'. Mas mostra muito bem (creio) a cultura da época, do Quixeramobim de
1958, ano imorredouro na memória da população, da cidade e de todo o município.
João Bosco Fernandes Mendes
Presidente da AQUILETRAS,Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes
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