quinta-feira, 22 de outubro de 2015

1958, ANO FATÍDICO PARA QUIXERAMOBIM


               Não foi por acaso que situei o meu romance O Lua (ainda não lançado – estou tentando fazê-lo através de uma grande editora, em âmbito nacional) no ano de 1958, tendo como cenário principal a cidade de Quixeramobim.

               Pela minha crônica História das Secas no Ceará, publicada há poucos dias, vê-se que foi o ano mais seco no período de 1951 a 2013, ou talvez em todo o século XX (não dispomos das precipitações anuais até 1950) com míseros 206,87 milímetros. Pelo critério da FUNCEME, classifica-se como seco o ano com precipitação igual ou inferior a 493,2 milímetros. Portanto, as chuvas daquele ano atingiram 41,9% do mínimo necessário para se classificar o período como 'inverno'.

               Como os sertanejos não dispunham da assistência financeira hoje existente (aposentadorias para o trabalhador rural e outros benefícios, como as diversas 'bolsas'), as secas constituíam períodos de pavor, a fome rondando as populações, como epidemia de peste.

               Os camponeses dirigiam-se à cidade, um saco no ombro, e iam-se aglomerando, mais e mais, diante dos armazéns, mercados e lojas que negociavam gêneros alimentícios. Todo o comércio cerrava as portas, tão logo percebiam aqueles ajuntamentos. Se o prefeito não tomasse a iniciativa imediata de distribuir alimentos, logo vinha o saque generalizado. Portas arrombadas e lojas esvaziadas pela massa famélica.

               A solução eram as 'frentes de serviço', grandes construções para oferecer trabalho braçal. Em 1958 foram implantadas duas obras importantes: a barragem, que aí está, dois quilômetros a montante da cidade, e trechos da Estrada do Algodão. Os canteiros de obras, regurgitando como formigueiros, com milhares de homens seminus, empurrando carrinhos de mão, tangendo animais, manuseando enxadas, pás e picaretas, máquinas enormes roncando como animais pré-históricos, mais pareciam cenários bíblicos, dos filmes de Cecil B. de Mille (v.g. Os Dez Mandamentos).

               Para aumentar a movimentação, o furdunço, a campanha política roncando no mundo.

               Disputavam a Prefeitura a Dona Aldamira Guedes Fernandes (esposa do Dr. Joaquim Fernandes), pelo PSD, e o Sr. Álvaro Araújo Carneiro, pela UDN.

               A 'mídia' da época eram as irradiadoras (ou simplesmente 'radiadoras'), com seus amplificadores montados nos postes, bradando o dia inteiro e entrando pela noite. Quem fosse premiado com uma besta daquelas bufando em sua porta, tinha que rezar para se adaptar àquela zoeira infernal, arranjar algodão para os ouvidos, ou... mudar-se.

               Pelo PSD, a Voz de Cristal, que viria a transformar-se na Rádio de mesmo nome, que aí está. Pela UDN, a Voz da Liberdade.

               Ninguém era neutro. Imperava a lei 'Quem não está comigo, é contra mim'. As diferenças políticas, mais do que hoje, transformavam-se em inimizades profundas, eternas, quando não, em arranca-rabos, batalhas campais. Quem não apreciava, ou não tolerava, as intriguinhas, as rasteiras, as invencionices maldosas dos cabos-eleitorais e dos desafetos, rezava para aquele inferno passar logo.

               Uma ocorrência violenta, de grande porte, iria marcar aquela campanha e ficar na memória da população da época, e ainda hoje é narrada por muitos, com riqueza de detalhes (e alguns enganos, como sempre ocorre na tradição oral).

               Um dos principais líderes da UDN (mas não candidato) era José de Matos Luna, fazendeiro originário de outro município, e chegado a fazer justiça com as próprias mãos, segundo se comentava.

               Diz a tradição que ele teria determinado à Voz de Cristal parar com a propaganda em favor do partido contrário, isto é, da Dona Aldamira. O proprietário da Voz de Cristal, Fenelon Augusto Câmara (pioneiro no serviço de radiodifusão em Quixeramobim, e hoje um dos patronos da nossa Academia, a AQUILETRAS) pede ajuda aos correligionários, que mandam quatro homens, então atuando na guarda do DNOCS, criada por conta do serviço da barragem.

               De acordo com o processo existente, com quase mil páginas (do qual tenho cópia), no dia marcado Luna dirige-se aos estúdios da Voz de Cristal, com visíveis intuitos provocatórios (afinal, ali era reduto de seus adversários políticos).

               Ocorre um tiroteio, transmitido "ao vivo" pela amplificadora, no qual morre Luna e outros saem feridos. Um verdadeiro dia de juízo para Quixeramobim.

               Em torno desse evento, construí um romance, contendo alguns fatos reais e outros fictícios, no qual descrevo a cultura e a pequena Quixeramobim da época. Considero esse o melhor trabalho que realizei, entre a dezena de livros que já escrevi. O título: O Lua – Romance-Reportagem, Ambientado em Quixeramobim e Fortaleza, de Meados do Século XX, Mesclando Realidade e Ficção de Forma Envolvente, Fruto de Muita Pesquisa.

               No momento esse trabalho encontra-se sob análise em uma editora de São Paulo, e aguardo sua resposta, quanto a uma possível publicação em âmbito nacional.

               De 1958 para cá, Quixeramobim mudou horrores. Qual uma criança que se transforma em adulto. Algumas coisas para melhor, outras nem tanto, como sempre ocorre com o crescimento econômico.

               No momento enfrentamos mais uma seca, de grandes proporções. Como se vê na crônica - História das Secas no Ceará, já mencionada, quase a metade dos anos deste século foram secos, algo inédito e que pode indicar uma deterioração das condições climáticas, geradoras de chuva.

Felizmente, não temos mais a massa de famintos, sacos às costas, invadindo o comércio. Os benefícios dos governos aliviam suas fomes, suas agruras.

Infelizmente (ou não), o sertão quase não é mais uma fonte de sobrevivência, para a prática de culturas de subsistência. Ninguém acredita mais na agricultura sertaneja, no que fazem muito bem. O que se consegue em um ou dois anos de boas chuvas, é tragado implacavelmente por um só ano de seca. O sertanejo transforma-se em citadino (habitante da cidade), o interior vira em deserto, de homens e animais, como falei na minha crônica O Sertão, um Deserto, publicada há poucos dias.

Quer mais detalhes daquele ano fatídico, 1958, leia o meu livro 'O Lua', que, de um modo ou de outro, chegará à população em breve. Espero não haver ferido suscetibilidades, ou mal entendidos, algo tão comum e tão frequente, quando se usa a linguagem escrita.

Em 1958 não havia as redes sociais, celular, Facebook, televisão, nem mesmo as rádios. As maledicências, os fuxicos, os boatos maldosos, eram transmitidos boca a boca, ou quando muito, por uma carta-anônima (felizmente, o Facebook não admite o anonimato, o que permite identificar exatamente a fonte do comentário pernicioso).

1958 tinha essa vantagem, a impossibilidade de denegrir os outros através das redes sociais, mas, em compensação, uma infinidade de agruras para as vítimas da seca.

A campanha política, tão agitada, violenta e até perigosa, foi vencida por Dona Aldamira (ainda hoje na memória de inúmeros quixeramobienses), que iria fazer uma boa administração, humana e de muito socorro aos humildes e necessitados, com aquela sensibilidade que tanto caracteriza a personalidade feminina (nem sempre, mas bem mais do que nos homens).

No meu livro, já mencionado (O Lua), abordo a cultura da campanha política, usando a ficção literária. É bom frisar que o romancista goza de liberdades para criar, poetizar, fantasiar. Muitas pessoas, menos esclarecidas, são levadas a pensar que tudo existente em um romance é real, aconteceu efetivamente, o que não é verdade. O romancista pode criar o que bem entender, usando sua imaginação, um dos maiores dons da mente humana, origem de toda a arte – tanto literária, como musical, teatral, plástica e tudo o mais.

Repisando o assunto, aquele livro – ainda não lançado, como já disse, classificado como 'romance-reportagem', contém alguns fatos históricos, mas nem tudo ali é história. Caso contrário, não seria 'romance'. Mas mostra muito bem (creio) a cultura da época, do Quixeramobim de 1958, ano imorredouro na memória da população, da cidade e de todo o município.

 
João Bosco Fernandes Mendes
Presidente da AQUILETRAS,
Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes

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