A 25 quilômetros
da cidade, à margem direita do Rio Pirabibu, Canafístula, a Velha (em oposição
à fazenda Canafístula, da família Carneiro, talvez a maior do município, um ou
dois quilômetros adiante), é um dos mais importantes repositórios de
reminiscências da história de Quixeramobim.
A primeira
Canafístula (chamemos assim) foi implantada no século XVIII pelo Ten. General Vicente Alves da Fonseca,
que, segundo Ismael Pordeus[1]
(citando"fonte autorizada"), "foi o construtor do primeiro açude
público no Ceará" – "no município de Quixeramobim, pelas eras de mil
setecentos e tantos". Era natural de Olinda, Pernambuco, homônimo de seu
pai (o que andou gerando certa confusão), Ten. Vicente Alves da Fonseca (o pai
não era General, mas Tenente), casado em 21.10.1776 com Maria Francisca do
Espírito Santo. Dessa união nasceram quatro filhos (um homem e três mulheres,
entre as quais Francisca Maria, que
viria a ser mãe de Maria Francisca – a futura Marica Lessa).
Francisca Maria veio a casar-se com José dos Santos Lessa, em 30 de outubro
de 1792, na Matriz de Quixeramobim, e de seu consórcio tiveram quatro filhos,
três homens e uma mulher, Maria
Francisca, a Marica Lessa.
O General Vicente
Alves da Fonseca, que era tio de José dos Santos Lessa, falecera um ano e dois
meses antes: a 29 de agosto de 1791.
José dos Santos Lessa, que herdou do
pai (José Lobo dos Santos, natural do Porto, falecido em 28.07.1792) e do
General, através da mulher, Francisca Maria, veio a se tornar Capitão-Mor e o
homem mais rico e poderoso de Quixeramobim. Uma ideia disso: para fazer frente
às tropas de Pinto Madeira, em Quixeramobim foram arrecadados 300 mil réis,
entre doze pessoas do município. José Lessa entrou com um terço, 100 mil.
Também foram doadas 320 reses, por 147 pessoas, das quais o Lessa entrou com 28
(a média por pessoa foi pouco mais de duas).
Maria Francisca (a Marica) casou-se na
Fazenda Canafístula, residência da família, no dia 30 de junho de 1827 (com 23
anos e 5 meses: nascera em janeiro de 1804), com o Tenente Domingos de Abreu de
Vasconcelos Júnior (conforme a certidão de casamento), pernambucano, nascido em
1801, com 3 anos mais que Marica, portanto.
Sete anos depois,
a 26 de agosto de 1834, morria o Capitão-Mor José dos Santos Lessa, deixando
Maria como senhora da Canafístula e das outras fazendas da família (não tenho
registros dos destinos dos seus três irmãos homens, mencionados acima).
A 20 de setembro
de 1853, Marica manda assassinar o marido, Domingos Vítor de Abreu e
Vasconcelos (como consta na maioria dos documentos). E começa o seu calvário,
seu cálice de amargura. Acostumada a mandar e desmandar, certamente não
esperava que as coisas dessem no que deram, a sua desgraça total, irreversível.
Ocorre que o seu partido não estava mais no poder, e naqueles tempos a política
era mais cruel do que hoje: aos derrotados aplicava-se integralmente a frase do
general que derrotou os romanos: Vae victis! – Ai dos vencidos![2]
Os que pertenciam, ou simpatizavam, com os vencidos, eram todos defenestrados
do poder, voavam dos cargos implacavelmente. E Marica, cegada pela maior
embriaguez do mundo, chamada paixão, não avaliou isso como devia. Aposto que
não esperava nem ser presa. E não somente foi para as grades (no prédio
histórico da Câmara Municipal de Quixeramobim), ao lado da igreja Matriz, como
também condenada: inicialmente, a 30 anos. Depois, no julgamento do recurso,
parece que a pena foi acrescida, em vez de reduzida. Naqueles velhos tempos,
mulher que mandava matar o marido não merecia dó, piedade ou compaixão. Mais do
que hoje.
A Canafístula, sua
principal fazenda, foi vendida, como
todas as outras (eram várias). E apostamos, sem medo de errar: entrou tudo no
ralo, ou poço sem fundo, dos advogados, essa classe de cidadãos honradíssimos
(com poucas exceções), incapazes de uma mentirinha qualquer, ou de não declarar
a um cliente: não vou aceitar a sua causa, porque está visivelmente perdida, e
não quero o seu dinheiro a troco de nada.
Como sabem até as
galinhas, em Quixeramobim, Marica morreu na miséria, mendigando nas ruas de
Fortaleza, e retornando no fim do dia para a cadeia, de onde não quis mais
sair, concluída a pena.
Na virada do
século XX, a Canafístula (ou boa parte dela) era propriedade do Coronel Lulu –
José Luís Alves Teixeira, que, segundo memórias de seus descendentes, na seca
do 15 (1915), perdeu 600 reses.
No momento, ainda
não sei de quem ele adquiriu a propriedade, se da Marica, diretamente. Espero
ter tempo e disposição para consultar os cartórios, para uma resposta
documentada. Mas conheci uma escritura de 1904, do inventário de seu primeiro
casamento, indicando que seria o proprietário havia muitos anos.
Um pequeno
registro, para se dar uma ideia de quanto os tempos mudaram. Quando Damião
Carneiro, em 1925, adquiriu uma pequena propriedade (apenas 200 hectares, um
nada, diante das terras da Marica, e depois, do Coronel Lulu), vizinha à
Canafístula (na época só existia uma), denominou-a – também – de 'Canafístula'.[3]
Dona Cotinha, filha do Coronel Lulu, mãe do Luís Almeida e de Dona Sinharinha
(esta, mãe do Alfredo e do Dr. Antônio Machado, avó do Ricardo Machado, do
Sérgio Machado, do Celso e da Maria Teresa), mulher de muitos brios,
temperamento forte, mandou um recado ao Damião: que ele arranjasse outro nome
para sua propriedade, pois 'Canafístula' era a do seu pai, Coronel Lulu. Damião
obviamente não obedeceu, tanto que aí está a "Canafístula dos
Carneiros", como chamam na região. Ironicamente, hoje, quando se fala em
'Canafístula', em Quixeramobim, a ideia que vem é a dos Carneiros. Muitos,
principalmente os jovens, nem sabem da existência da Canafístula Velha.
Entre os
descendentes do Coronel Lulu, temos cinco prefeitos de Quixeramobim: Luís
Almeida (neto), Manuel Martins de Almeida (neto), Alfredo de Almeida Machado
(bisneto), Osvaldo Martins de Almeida (bisneto) e Antônio de Almeida Machado
(bisneto).
Entretanto, com uma verdadeira multidão de filhos,
de dois casamentos, seu latifúndio foi dividido como bolo em festa de pobre,
uma tripinha para cada um, não restando nenhum deles rico, à custa da herança.
Uma filha dele,
minha 'meia-sogra' (mãe de criação de minha esposa), Maria do Carmo Teixeira, um
dos últimos descendentes do Coronel, era conhecida por Deus e todo mundo em
Quixeramobim, como 'Tia-Carmelinda'. Uma alma santa, que faleceu em minha casa.
Quanto à
casa-grande do Capitão-Mor José dos Santos Lessa, e da mal fadada Marica,
possivelmente uma das maiores e melhores do município, dado o poderio –
econômico, político e social – de seus donos, levou a breca. Certamente
abandonada por muitos anos, com Marica no inferno da prisão, deve ter-se
deteriorado progressiva e implacavelmente. O Coronel Lulu já não a usou
(sabemos exatamente onde este morava – sua casa hoje está dividida em outras
menores).
Com o romance de
Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço, um dos melhores da literatura brasileira
(nada a dever a Machado de Assis ou Graciliano Ramos), Marica ganhou fama mundo
afora. E os que foram à Canafístula, conhecer os despojos de sua casa-grande,
se encarregaram de apoderar-se dos vestígios lá existentes até umas décadas
atrás. Nos anos 70 lá encontrei restos de louça importada. Hoje, nem mais um
caco. Para não se dizer que nada restou, lá estão pedaços dos tijolos, que um
dia pertenceram à alvenaria (acho que mesmo os tijolos inteiros, que existiam
até poucos dias, já carregaram). Verdadeira lástima, esse mau hábito de apropriar-se
dos objetos de sítios históricos não protegidos, e levar como lembrança. Apenas
um restinho de alvenaria: um tanque, de pedra, tomado pela mata. Mais adiante –
uns cem a duzentos metros – do local da casa-grande, o cemitério, que, segundo
a tradição (e o conhecimento da cultura da época) era usado para sepultar os
escravos. Os 'brancos' eram sepultados na Matriz de Quixeramobim, 'grades
acima' (os ricos) ou 'grades abaixo' (os defuntos de pouca ou nenhuma
categoria)... Hoje o Campo Santo está murado e com muitos túmulos modernos, da
comunidade da atual Canafístula Velha. Na época, teria certamente uma cerca qualquer, e no interior
o símbolo universal do cristianismo, cruzinhas de madeira.
Quem sabe, no futuro,
pelo que percebemos, arqueólogos vão escarafunchar o local da casa-grande, à
procura dos alicerces, como insinuou o Seu Darlô, que nem mesmo tem
conhecimento de sua função – vigilante, por acaso, e solitário, dos despojos de
Marica Lessa. E que nem vai ler esta crônica, por absoluta impossibilidade,
mesmo que eu lhe entregue uma cópia –
como pretendo fazer. É que as letras lhe parecem coisinhas estranhas, tal-qualmente
as viam os escravos da Marica. E, também é possível, a ela própria.
Parece uma maldição:
até os despojos da mulher estão a virar pó, quase não resta mais pedra sobre
pedra. Com exceção do tanquezinho, que teima em sobreviver. Até quando os
visitantes resolverem demoli-lo também, para carregar como despojos, ou
lembranças, ou souvenirs, ou... pura estupidez.
João Bosco Fernandes Mendes
Presidente da AQUILETRAS,
Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes
[1] À
Margem de Dona Guidinha do Poço [2004], p. 134. Essa obra foi a principal fonte
deste trabalho.
[2] Foi
feito um acordo para os romanos pagarem determinado peso de ouro. Ao se fazer a
pesagem, e os dois pratos da balança se igualarem, o general vencedor jogou a
sua enorme espada no prato dos pesos. Ante o protesto dos romanos, ele
pronunciou a famosa frase: Ai dos vencidos!
[3]
Armando Falcão, no pequeno opúsculo "Damião Carneiro, o Bandeirante do
Sertão Central", afirma que Damião "adquiriu a fazenda Canafístula,
de quem fora proprietária, em passado distante, Dona Marica Lessa".
Enganou-se, o ministro da Ditadura. Os 200 hectares que ele adquiriu naquele
momento andavam longe de representar o mundão de terras de Marica. Uma nesga,
diante do latifúndio dela, e não se chamava 'Canafístula'.
Que coincidência, eu tatareneto do Coronel Lulu cheguei aqui
ResponderExcluir