quinta-feira, 22 de outubro de 2015

CRIME E CASTIGO, O GRANDE ROMANCE


 

 

Estou lendo (mais uma vez) Crime e Castigo, de Dostoiévski.

               Talvez, não sei bem, porque ouvi há poucos dias, na televisão, que Nelson Rodrigues leu Crime e Castigo 160 vezes. Possivelmente, um exagero. Mas um indicativo de quanto o dramaturgo brasileiro valorizava a obra.

               Já li o livro umas duas ou três vezes, a primeira ainda na juventude, e lembro que fiquei tão impressionado quanto uma criança que assiste um filme de terror (embora a obra não se compare a esses filmes idiotas).

               Acho que ninguém pode ter pretensões de ser romancista (de boa qualidade) e não ler Crime e Castigo. Não para imitar, porque quem imita não é romancista. É idiota. Para saber o que é um grande romance, uma grande obra literária.

               Até porque hoje não fazemos mais romances à Dostoiévski.  Deus me livre de escrever imitando o cara (ou qualquer outro, como a minha querida e maravilhosa Patrícia Melo, para mim a maior romancista brasileira do momento). Se me pedissem isso, seria uma tortura, nem aceitaria, de maneira alguma.  Mas ao ler essa obra do maior escritor russo do século XIX (para mim), não podemos deixar de sentir uma coisa estranha, um frio percorrendo a espinha dorsal.

               Dizem que Dostoiévski não foi grande em termos linguísticos, ao contrário de Tolstoi[1], seu contemporâneo. O que me provocou raivas contra Tolstoi (tanto, que este eu li muito pouco, por puro ressentimento: o grande, da época, tinha que ser Dostoiévski). Mas parece que é verdade. Dostoiévski escreveu muitas vezes apressado, verdadeiro desastre para um escritor. É que ele ganhava a vida com suas obras. E papocou dinheiro com jogo, foi viciado. Andou fazendo besteiras, os gênios não estão livres disso (um consolo para nós, simples mortais?).

               Tive a pretensão de conferir a linguagem do cara, lendo-o no original, em russo.

Na década de 70, no auge da ditadura, resolvi ir para a Rússia (aliás, União Soviética, na época). Meu argumento (para mim mesmo) era fugir do Brasil, que naquela época era mesmo insuportável, muito pior do que hoje, verdadeira bosta. Mas suspeito que o meu propósito maior era aprender a língua e ler a literatura russa do século XIX, no original.

               Escrevi pelo correio (vejam só, que idiota que era) para o Instituto Brasil-URSS, inscrevendo-me para a Universidade Patrice Lumumba, em Moscou, e pedindo subsídios. E eles mandaram: material para estudar russo e outras coisas. Passei a estudar o idioma e tudo o mais.

               A repressão da ditadura, que não era idiota, anotou (fichou) meu nome bem direitinho, de modo que depois iria impedir que eu assumisse um emprego público, em que fora aprovado. Castigo bem menor do que o de outros (inclusive de um dos nossos acadêmicos), que foram presos e torturados. Graças a Deus, não cheguei a passar por isso. Não sei se teria estrutura para aguentar isso, sem enlouquecer, com a sensibilidade que tenho.

Bom, mas enquanto o tempo passava, e para sobreviver, que meus pais não eram ricos, arranjei um empreguinho de professor numa cidadezinha do interior: Quixeramobim.

               O cara que me contratou, chamado Marum Simão, nunca sonhou (até hoje, apesar de ser meu grande amigo) que estava contratando um maldito comunista, esquerdista de carteirinha, que em pleno Quixeramobim estudava russo, a língua do satanás, e pensando em emigrar para aquela terra maldita, coisa do diabo, como muitos pensavam na época.

               Quixeramobim me salvou (ou não?).

               Conheci uma coisa que transforma o homem em anjo ou diabo: uma coisinha parecida com um violão, cinturinha fina, bundinha bem feita, cabelos loiros caindo até os ombros, meiga, a coisa mais encantadora do mundo. Arriei. Os quatro pneus.

               Ela morava na rua Desembargador Américo Militão, vizinho ao Luís Borges (que trabalhou uns duzentos anos na prefeitura, e era uma eminência parda, em várias gestões, inclusive quando fui chefe de gabinete).

               Pouco a pouco, fui mandando o russo, com Dostoiévski e tudo, ao diabo. Troquei Dostoiévski por uns cabelos loiros, cintura fina e bundinha empinada. Deixei de estudar as matérias do Instituto Brasil-URSS, me dedicando apenas às aulas que dava no Colégio Dr. Andrade Furtado. (Acho que fui um professor competente, me dedicava até os ossos.)

               Um dos momentos mais gostosos da minha vida, talvez.

               Enquanto curtia os cabelos loiros, com bundinha empinada e tudo o mais, ia progredindo na vida, afinal ninguém é de ferro. Fui contratado como chefe do Gabinete do Prefeito (primeiro, do Alfredo Machado, depois do Osvaldo Martins - acho que fui o único a pegar duas administrações, com prefeitos diferentes).

               Vidinha boa aquela, apesar de trabalhar como um negro cativo, três expedientes. Queria corresponder à confiança depositada em mim, creio, pelo Alfredo e pelo Osvaldo. Suspeito que eu tenha sido o Chefe de Gabinete de Quixeramobim mais preocupado com o resultado de suas atividades. Contribuí (aliás, fui o dono da ideia) para a fundação da Biblioteca Ismael Pordeus (embora quem tenha batido o martelo: 'cumpra-se', tenha sido o Alfredo Machado, que ainda hoje guardo na lembrança, inclusive o momento em que conversamos sobre a biblioteca - 'vamos fazer, e ela vai se chamar Ismael Pordeus'). O Alfredo foi quem batizou a biblioteca de 'Ismael Pordeus'. Mas eu trabalhei horrores para a coisa. Como trabalhei. Deus que o diga. Costumo dizer que naquela década de 70 Quixeramobim passou por uma guinada cultural, e eu fui uma peça importante nisso, modéstia à parte (talvez devido às minha características - ousadia e iniciativa). Depois eu falo mais disso.

               Hoje não sei o que teria sido melhor para mim: emigrar para a Rússia (e ser transformado em marionete dos comunistas), mas aprender o russo bem direitinho (o que nunca fiz realmente), ou me enrabichar com uns cabelos loiros, bundinha empinada. A língua, muito bonita, é diferente pra caramba do nosso português. A começar pelo alfabeto, o cirílico.

               Aliás, hoje continuo com ela, com seu riso maravilhoso, que adoro, apesar da merda que é envelhecer.

               Deixei Dostoiévski de lado. Continuei adorando a literatura russa do século XIX, apenas não mais com a pretensão de ler no original (como gostaria, agora, de ler  Dostoiévski e Gógol no original - ganhasse uma boa grana, ia morar lá, só para ler os russos do século XIX no origjnal).

               Aliás, vou contar a coisa como deve ser.

               Dostoiévski não é mais o meu grande astro, o meu grande rei. Apesar de que alguns russos do século XIX continuam a ser, para mim, a coisa mais maravilhosa, a coisa mais extraordinária do mundo, em letras. Ao contrário da literatura russa do século XX, destruída pelos comunistas, uma bosta.

               Hoje, quem eu adoro mesmo, em literatura, é Gógol (Nicolai Vassiliévich Gógol), o sujeito mais criativo, mais fantástico, na literatura mundial, que nunca devia ter morrido.

               Quem foi maior: Gógol ou Beethoven? Pergunta inadequada, pois não se pode comparar banana com laranja. Gógol foi literato, Beethoven um compositor (divino).

               Se você quer ser romancista, não pode deixar de ler Dostoiévski e Gógol. Aliás, Dostoiévski disse: todos nós (escritores de sua época) viemos de O Capote. 'O Capote' foi o mais extraordinário, o mais brilhante  conto de Gógol. Foi ele que criou o realismo fantástico, com que Gabriel Garcia Márquez, iria ganhar o Prêmio Nóbel, no século XX (nunca vi alguém dizer isso, mas para mim não há dúvida).

               Tem que ler Dostoiévski, porque reúne as técnicas do romance, que a humanidade acumulou até sua época (e algo atribuído a James Joyce, muito depois: o diálogo interior). E Gógol, porque... ora, porque Gógol... é Gógol... que droga.

Você pode pegar na internet todas as obras de Gógol (de Dostoiévski, não sei, mas talvez também). Comece pelo maravilhoso conto O Nariz, depois, Diário de Um Louco, e finalmente, O Capote, que deve esperar até você se familiarizar com o grande gênio.

               Voltando a Crime e Castigo, ao longo de boa parte da obra, ele explora o suspense: você sabe que Raskólhnikov (o protagonista) vai fazer algo muito mal, mas não sabe exatamente o quê. E termina executando o seu plano terrível (que não vou revelar aqui: se quer saber, leia o livro).

               É a obra de análise psicológica por excelência. Dizem até que Dostoiévski foi antecessor - e influenciador - de Freud, na compreensão das mazelas mentais humanas.

               Na Estante Virtual (site de sebos brasileiros na internet) você pode comprar Crime e Castigo a partir de R$10,00 (mais o frete). Então, ninguém vai poder argumentar que não leu a grande obra por falta de dinheiro.

               E se não ler, azar seu: não sabe o que está perdendo.

 

João Bosco Fernandes Mendes

Presidente da AQUILETRAS -
Academia Quixeramobiense de Letras, Ciências e Artes


[1] O Houaiss registra Tolstoi  sem acento (no verbete tolstoiano). Por sua origem, pois pelas nossas regras de acentuação deveria ter (como 'corrói'). Mas o russo não usa acentuação.

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